Depoimentos


AMÉLIA MINGAS, QUATRO ANOS DE SAUDADE



"A contribuição de Amélia Mingas para uma história linguística angolana: contextualizações iniciais"

Fonte: Revista da Adralin (Dezembro 2021)
Autor: Eduardo Ferreira dos Santos


Macedo Soares, Amélia Mingas
e a historiografia linguística transatlântica

Fonte: Cadernos de Estudos Linguísticos · Junho 2022
Autores: Olga Soares
e Eduardo Ferreira dos Santos


17 de Dezembro de 2022

A Quarta Idade

Evocando a data do aniversário natalício da Professora Amélia Mingas, decidi inserir neste espaço digital que lhe é carinhosamente dedicado o texto de apresentação do livro “A Quarta Idade” do escritor Dario de Melo.
A ideia foi suscitada pela abordagem de que tenho sido alvo por parte de editores interessados em textos inéditos da aniversariante. Invariavelmente tenho respondido que, neste momento, já me parece muito improvável a existência de material inédito, pois, ao perder a Amélia, senti-me obrigado a fazer todos os esforços necessários para a recolha e preservação do seu legado dada a sua inquestionável importância. Com esse fito, fiz buscas exaustivas nos arquivos da família, e um “garimpo” nos perdidos e achados e junto de contactos da Amélia. Creio que não deixei por explorar qualquer indício, qualquer pista que me pudesse conduzir à descoberta de mais algum tesouro com a sua assinatura.
A dada altura convenci-me de que teria recolhido tudo, ou quase tudo, o que nos terá legado na sua intempestiva partida. Digo “quase tudo” tomando em conta o que se terá “extraviado” em computadores esquecidos à bordo de aviões e comboios em algumas das suas viagens de serviço mais atribuladas. Em suma, todo o material que foi possível recolher encontra-se neste site dedicado à sua memória e à disposição de todos os possíveis interessados.
Mas, há sempre um mas... afinal existe um texto que se pode considerar inédito, pois apenas foi divulgado, enquanto apresentadora, na cerimónia de lançamento da obra “A Quarta Idade”, de Dario de Melo. Na ocasião, o próprio autor reagiu com o seguinte comentário: “Amélia, descobriste no livro aspectos dos quais não tinha consciência. Tanta perspicácia …”
Convido-vos, pois, a lerem o referido texto com o sentimento de estarem a descobrir mais um pequeno tesouro, que ficará assim a enriquecer este espaço de memória.


Dario de Melo
(1935-1922)

O escritor nas palavras de Octaviano Correia

Dario de Melo nasceu no mato, em Benguela. Homem de mil ofícios: escritor, cronista, professor, gerente agro-pecuário, inspector escolar, radialista, editor, funcionário do Ministério da Informação, jornalista... Com Filipe Zau, Rosa Roque e Alice Berenguel escreveu muitas das letras de canções para crianças ainda hoje lembradas e cantadas. Em parceria com Octaviano Correia foi director da revista Tveja  da TPA (1983), director do Jornal de Angola e do Correio da Semana (1991). Em 1992 fundou o jornal Jango. Membro fundador da União dos Escritores Angolanos, de que foi presidente da Mesa da Assembleia Geral, publicou imensos artigos em jornais e rádios.
Com um certo humor cáustico se definia a si próprio como "um pouco de tudo e possivelmente nada de coisa alguma”.
"Dario de Melo não se limitava a escrever. Imaginava, inventava. Arrancava sabe-se lá de onde ideias novas como as que deram origem à colecção Piô Piô, uma série de pequenos livros, com apenas uma estória, com dimensões tão pequenas, pouco mais de um palmo, que foi uma das primeiras senão mesmo a primeira colecção a ser levada aos leitores angolanos. 
Algumas obras de Dario de Melo: "Quem vai buscar o Futuro”; "Quitubo, a terra do arco-íris”; "Quem se gaba sempre acaba”; "A estória do leão velho” (teatro);”Inaldino”; "O comandante sem armas”; "O grilo e as makas”; "As sete vidas de um gato” (prémio Palop de Literatura Infantil em 1998); "Natal adiado”; "Onda Dormida” e "Poemas serôdios” (poesia).

O escritor terá deixado pouco mais de uma centena de contos inéditos, engavetados.

Dario de Melo, segundo Octaviano Correia, caracterizava-se por ser "um crítico desabrido dos erros e falhas da nossa Cultura (...). Sem papas na língua, por vezes impetuoso em demasia mas ao mesmo tempo único. (...) Senhor de uma escrita adocicada, onde as palavras bailam ora ao pulsar suave, melódico do kissanje, ora ao ritmo frenético do batuque angolano, as páginas das suas estórias deixam escapar o cheiro bom da terra molhada, convidativa, do fumo das sanzalas cheias de silêncio musical, das noites do mato, do melhor, o mais autêntico que Angola tem”.

(Síntese da apresentação de Octaviano Correia no dia 1 de Junho de 2021)

In: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/dario-de-melo-a-morte-de-um-homem-vertical/


12 de Agosto de 2022

(Lembrando Amélia Mingas)

É inacreditável que já tenham decorrido três anos desde a tua partida. Ao cabo destes duros anos, acabei por me render à evidência de que, no meu caso, não funciona  a máxima de que “o tempo cura todos os males”. Com efeito, não me abandona a sensação de que a dor da perda e a saudade imensa da vida conjugal irão acompanhar-me até ao dia em que também partir, triste e preocupado pelo que as novas gerações vão herdar: um planeta ameaçado por pandemias, perigosas disputas geopolíticas e estratégicas e alterações climáticas com selo de risco de extinção da vida.
Lembras-te de como me socorria de músicos, poetas ou artistas para criar as mensagens que te dirigia por ocasião de  efemérides familiares como, por exemplo, os aniversários?
Discorrer sobre isso faz-me reviver experiências extraordinárias que compartilhamos e é, ao mesmo tempo, a forma de homenagear-te em mais um 12 de Agosto, infelizmente, sem a tua presença física, cuja alegria e intensidade tornaram inesquecível.
Dito de outra maneira, não pretendo escrever um texto erudito com temática concreta e definida, mas  apenas imaginar que pego na tua mão para reviver conversas de rotina que tivemos pelo simples prazer de te ouvir, sabendo que tinha também alguém atento à escuta. No centro dessas conversas, quantas vezes a  música, a literatura e a arte não tiveram lugar de honra? É inegável o seu contributo no processo de aproximação e equilíbrio da maneira de ser e pensar de cada um de nós. Para o ilustrar, começo pela fabulosa canção “What a wonderful world” de Louis Amstrong.

The colors of the rainbow so pretty in the sky
Are also on the faces of people going by
I see friends shaking hands saying, "How do you do?"
They're really saying, "I love you"


Essa canção inspirou-me para achar natural confessar-te que o mundo era especialmente maravilhoso por existires e os nossos caminhos se terem cruzado.
Quando iniciámos os primeiros passos na política, que viriam a desembocar na adesão à luta de libertação nacional, não terá Bertolt Brecht tido alguma responsabilidade na nossa orientação ideológica à esquerda? Pelo menos, não escapa a que aponte o dedo ao seu famoso poema “Perguntas de um Trabalhador que lê”. Como ficar indiferente aos versos:

Quem construiu a Tebas de sete portas?
           Nos livros estão nomes de reis.
          Arrastaram eles os blocos de pedras?
         E a Babilónia várias vezes destruída –
        quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
       da Lima dourada moravam os construtores?
       Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
      A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
     Quem os ergueu?
  (…)

Ainda no âmbito da influência das leituras, ambos identificamos outro autor com conta, peso e medida na construção do nosso romantismo revolucionário: Maximo Gorki, cujo romance “A Mãe” foi  inspirador para a disponibilidade dos que se engajam na luta por causas justas, mesmo as que requerem um elevado grau de sacrifício.
Não cabe aqui desvendar toda a biblioteca, discoteca e galeria de artes em que procurámos a informação e o conhecimento que nos preparassem para sustentar as nossas escolhas na vida. O meu propósito é apenas o de evocar-te e deixar um breve testemunho de que continuas presente.
Porque gostavas muito de rir, de tal forma que a tua gargalhada e o teu sorriso se impuseram como 'imagens de marca', termino com uma nota humorística que, com toda a certeza, te fará sorrir.
Como detentora de uma memória de fazer inveja, lembrar-te-ás facilmente de um episódio relacionado com os sanitários (WC) nos tempos do maquis:
Convém esclarecer que no maquis os 'sanitários' eram simples buracos abertos no mato, a alguma distância do perímetro da residência, vedados por ténue paliçada de paus e capim, sem qualquer cobertura e que eram alcançados através de um trilho rasgado no capinzal.
Ao utente dos sanitários, o esvoaçar repentino e ruidoso das moscas fazia lembrar a ovação do público a celebrar um golo num apinhado estádio de futebol. Daí que quando se deslocasse aos ditos, o camarada Suluka, com a sua típica veia humorística, anunciava: “vou ao Estádio da Luz”.

Luanda, 12 de Agosto de 2022


Minha irmã gémea!

Acordei esta manhã e pareceu-me ( tenho a certeza) que ouvi a tua gargalhada inconfundível. Ri-me também.
Foi uma comunicação de segundos. Logo me dei conta que estavas comigo, mas a ausência física lembra-me, implacável, que és só e somente espírito.
Este dia, mais do que o habitual, é cheio destes contrastes: sinto e sei que estás aqui comigo, mas a dor de não poder tocar-te é incrívelmente mais arrebatador.
As noites são límpidas em Joanesburgo, especialmente onde vivo agora. A Estrela onde resides brilhará com maior intensidade. Havemos de conversar.
O nosso elo foi selado nas estrelas, muito e bem antes de nos olharmos nos olhos.
Amo-te, como sempre, minha Pretita!

Graça Simbine


A morte não separa quem se ama

À Amélia Mingas, no dia em que choramos o terceiro ano da sua partida.

Quando escrevi o “Pegadas na areia” não fiz qualquer esforço para decidir a quem dedicaria a obra. Conheci a Amélia Mingas quando ambas eramos professoras do Liceu Salvador Correia (que vimos ser crismado com o nome de Mutu Ya Kevela), em Luanda, no primeiro ano que se seguiu à independência de Angola. Depressa nos sentimos irmãs! As vivências que partilhámos nessa época de grandes emoções, e todas as que se seguiram num convívio próximo ou distante ( a distância separa os corpos, mas não os espíritos) seria inspiração para vários romances. Faz hoje três anos que a Amélia partiu. Já não pôde ler o “Pegadas na areia” e falta-me o seu comentário ao que escrevi. Comentou o Jota, seu companheiro de caminhada, meu irmão por afinidade, e o que manifestou consta na badana do livro – foi surpresa que lhe fiz. O Jota hoje é viúvo da irmã que me falta! Partilhamos a amargura de não poder ouvir as suas gargalhadas exuberantes, os seus juízos atinados, a sua conversa interessante – ela, que era também uma ouvinte atenta daquilo que lhe transmitíamos! A Amélia partiu de repente, sem nenhum mal que fizesse prever esse desenlace e que fosse do nosso conhecimento. Agora acredito que a Amélia não decidiu deixar-nos , contudo, se o tivesse feito, fá-lo-ia exactamente como aconteceu – sem degradações de espírito nem físicas. A Amélia partiu inteira! Nós ficámos de alma mutilada!

Termino afirmando o que há momentos escrevi ao Jota – A MORTE NÃO SEPARA QUEM SE AMA!

Graça de Sousa


17 de Dezembro de 2021 – Aniversário natalício de Amélia Mingas

(Tiveste qualidades
e defeitos, talvez.
Uma delas,
teres gostado de mim,
tornou-me um homem feliz.
Um deles,
teres partido antes de mim,
deixou-me infeliz.)


Amélia Mingas completaria hoje 81 anos de idade... mas partiu prematuramente, deixando um enorme vazio em todos os espaços onde familiares, amigos, colegas e companheiros de luta desfrutaram da sua presença fortemente marcante. 

Permitam-me que nesta data a recorde como a companheira que me fez
sentir uma pessoa completa e muito feliz.

 Não estou resignado e, por isso, agora vivo preso às lembranças que
guardo dela, lembranças muito ricas em qualquer das suas dimensões
desde a mulher até à cientista, passando pela combatente da liberdade
e pela cidadã interventiva. Com naturalidade, ganhou notoriedade dentro e fora do país, deixando um legado cuja preservação e divulgação se impõem enquanto património académico, científico e cultural do país e exemplo de cidadania. 

Em reconhecimento da importância e qualidade do seu contributo, têm-se sucedido várias homenagens, dentre as quais destaco:

  1. Em Setembro de 2020, a publicação do livro de homenagem “AMÉLIA MINGAS: A mulher, a cidadã, a académica”, organizado por Paulo de Carvalho & Jota Carmelino, com a colaboração de 28 autores e a chancela da Mayamba Editora;

  2. Por parte da Faculdade de Humanidades, em primeiro lugar, a atribuição do nome da Professora Amélia Mingas ao auditório dessa instituição e, em segundo lugar, a organização de uma empolgante homenagem na data do primeiro aniversário da sua partida (12 de Agosto de 2020);

  3. No decurso do mês de Março de 2021, o CCBA – Centro Cultural do Brasil em Angola promoveu uma Exposição “Projecto Mulheres do Brasil Mulheres de Angola” em que Amélia Mingas figurou como uma das homenageadas;

  4. Por parte do IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa), homenagem via Zoom, integrada na reunião do seu Conselho Científico, de 10 a 11 de Maio de 2021.

  5. Por ocasião da XIII Conferência dos Chefes de Estado da CPLP a 17 de Julho de 2021, a TV Zimbo inseriu uma reportagem destacando a acção da ilustre Professora enquanto Directora Executiva do IILP (2004-2008) em representação de Angola.

  6. Prestando um valioso serviço de divulgação, a Revista Njinga & Sepé, dirigida pelo Professor Doutor Alexandre Timbane, tem publicado textos da autoria da Professora.

  7. A UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) associou-se aos organizadores e participantes do e-book “O Português de/em Angola: Peculiaridades Linguísticas e a Diversidade no Ensino” em singela e emocionante homenagem durante o lançamento em modo virtual do referido e-book.

  8. Crónicas na comunicação social e publicações nas plataformas das redes sociais têm também contribuído generosamente para afirmar a imortalidade da nossa querida aniversariante.

Estas entidades e as ilustres personalidades envolvidas são a prova gratificante de que um número significativo de admiradores e continuadores está empenhado em não deixar que o legado da querida e saudosa Professora Amélia Mingas caia no esquecimento.

Esta constatação transporta-me para um estado de alma que poderia definir como música nos ouvidos, prosa no papel, poesia na voz e caloroso sentimento no coração.

Infelizmente, a única nota dissonante nesta verdadeira sinfonia é a falta de reconhecimento por parte das entidades oficiais ao não tomarem qualquer iniciativa no sentido de perpetuar a memória desta angolana distinta, seja instituindo um prémio nacional no âmbito da cultura ou educação, seja incluindo o seu nome nas opções de toponímia do país.

Amélia Mingas, presente!

Jota Carmelino - (17 de Dezembro de 2021)


Poeminha para Amélia Mingas

(De quem não é poetisa)
Amiga tive...amiga Tenho
Era seu Sema
Voar
Era seu Lema
Sentir
Era seu Tema
Pensar
Era seu jeito
Inspirar
MCR

Luanda 17 de Dezembro de 2021. Aniversário de Amélia Mingas (Medja, – Baptizada por sua Amiga e Camarada de Luta: Fernanda Saraiva de Carvalho).

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E para exprimir o que sinto pela sua ausência. E, sobretudo, para dizer as palavras justas como só os poetas sabem fazê-lo, evoco este extracto do poeta brasileiro Manuel Bandeira, na sua invocação da morte do poeta, também brasileiro, Mário de Andrade.

Embora o último verso, forte e belo, seja ainda doloroso de aceitar e de compreender, na sua plenitude.

Cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira

Você não morreu: ausentou-se

Direi: faz tempo que ele não escreve

Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.

Imaginarei: Está na Chacrinha de São Roque

Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?

A vida é uma só. A sua continua

Na vida que você viveu . Por isso não sinto agora a sua falta

(Manuel Bandeira)

https://lyricstranslate.com/pt-br/manuel-bandeira-m%C3%A1rio-de-andrade-ausente-lyrics.html


Amélia Mingas

Dr. Manuel Videira: Companheiro de Luta, Padrinho de casamento e médico

Dr. Manuel Videira: Companheiro de Luta, Padrinho de casamento e médico

Minha parente e minha saudosa afilhada. Partiste, como todos nós o faremos mais tarde ou mais cedo, só que tu fizeste-o mais cedo, deixando em mim um sentimento de angustiada interrogação. Mas porquê?
Para levares contigo uma insubstituível gargalhada, sonora, cantante e nativa que muitas vezes tem ecoado no mundo das minhas boas recordações.
Tive a ventura de só conhecer-te em Brazzaville, num mundo tempestuoso dos combatentes da libertação e sempre me impressionou a serenidade e a seriedade da tua conduta, o teu duplo amor pela Pátria e pelo Jota, como velas desfraldadas na rota da vida.
O amor pela Pátria haveria de, pouco mais tarde, juntar-nos num grupo restrito de nacionalistas e militantes inconformados com o desespero da situação em que se encontrava a nossa luta, para tentarmos encontrar soluções alternativas e radicais, em direcção a um novo rumo de esperança e  justiça. E foi aí que uma nova Amélia se revelou, corajosa, generosa, intransigente em defesa do amor à Pátria, à liberdade e à democracia.
Foi o tempo de luta sem glória, mas plena de sonhos e utopias, de risos e olhares cúmplices, de esperanças feitas do nada, de profundos sacrifícios e tu, sempre calma, confiante e sorridente, animadora para todos nós da Revolta Activa.
Chegados, enfim, ao solo pátrio, objecto de todos os sofrimentos anteriormente consentidos, confrontada com a incompreensão e injustiça,  mantiveste a tua jovialidade e desenvolveste uma carinhosa e resoluta devoção pela complexa linguística do teu povo e da tua terra.
Mas tudo isso não era o bastante para te pôr à prova.
Foi necessário roubarem-te, violentamente, o amor da vida, o Jota, e amordaçá-lo em quatro paredes misteriosas e desconhecidas, para revelar a tua grandiosa coragem e determinação perante os esbirros incultos e cruéis que cegamente obedeciam a uma vasto plano de morte à Democracia.
Mas, se nem tudo isso bastasse, ainda foi necessário que tiros, balas e granadas ameaçando directamente a vida do Jota e todos os seus parceiros da insubmissão de Brazaville viesse, mais uma  vez pôr a prova as tuas qualidades de militante activa pela Justiça, Liberdade e Democracia, pela Paz e pelo Amor total ao Jota.
E acima de toda essa convulsão do parto duma nova Nação, tempo ainda te restou para arrebatares o título de Doutora em Linguística pela Universidade de Sorbonne, em Paris, a capital da Cultura. Era preciso ser muito especial e assim o foste.
Depois disso foi sempre a bonança entre nós, as picardias do futebol, os quitutes de fim de semana, a chikwanga de Cabinda, os debates sobre a Nação. As viagens ao Huambo e ao Ukuma, em companhia do Jota, restam em mim como lembranças indeléveis, preenchendo o espaço da saudade.

Amélia, estás sempre presente, minha parente e minha saudosa afilhada.

Mwambaka Videira


Mimos e Pancadas no jogo da vida

É inevitável que me recorde permanentemente da Amélia o que faço sem qualquer esforço tal foi a sua marca, em extensão e profundidade, no desenrolar da nossa vida comum. Não quero nem sou capaz de me esquecer de quem me acompanhou numa viagem única de múltiplas facetas. Olhando para os inúmeros e empolgantes episódios dessa viagem, percebi o inegável toque de beleza no desfile de contrastes que a existência encerra: dia e noite, sol e lua, risos e lágrimas, são exemplos de contrastes de uma lista inesgotável. Os contrastes associados ao lema filosófico da unidade de contrários que marcam a dialética da vida.
A Amélia conviveu permanentemente com muitos mimos e algumas pancadas no jogo de uma vida que durou escassos 78 anos, considerando a sua vitalidade e energia.
Felizmente, no exercício de equilíbrio dos dois pratos da balança, não tenho dúvidas de que a inclinação pendia claramente para o prato dos mimos, pois, nela predominava o estado de felicidade.

Os Mimos

Por força da sua natureza cativante e inspiradora, os mimos recebeu-os e com fartura, dos familiares e amigos que dela gostavam. Vejamos, em seguida, alguns exemplos

- Os nomes carinhosos

 O  primeiro exemplo de mimos que me ocorre consubstancia-se nos nomes carinhosos que usualmente atribuímos a quem tributámos um grande afecto. Com efeito, no seu caso particular, temos o registo de muitos baptismos dessa índole: para a amiga Nana (Fernanda Saraiva de Carvalho) Medja era o nome da Amélia, o mesmo nome que foi também adoptado pela Cielito; Mameia para a Zila; Mamy e Mamusca para a Perpétua. Na minha cuba pessoal encontrava-se um numeroso manancial de opções, pois, os baptismos sucediam-se consoante o impulso dos momentos, alguns verdadeiramente especiais, daí, além do nome mais comum Bijú, outros como Pretinha, Mongonita e Raiozinho (de Sol).
O nome Raiozinho tem uma história: em cavaqueira com o Gentil, referi-me à Amélia como sendo o meu Sol. Em reacção, o Gentil sentenciou que estava mal porque o Sol  nascia para toda a gente. Eis a minha réplica: Ai nasce para toda a gente? Então, modestamente, contento-me com o meu e só meu raiozinho de Sol.

- O casamento em 3 núpcias

Eu gostava de brincar que detínhamos o record do Guiness no número de casamentos com o mesmo cônjuge: o 1º, foi o casamento guerrilheiro celebrado pelo Comandante Ndozi no Internato 4 de Fevereiro em que comparecemos empunhando cada um de nós a sua Pepexá (arma soviética com carregador cilíndrico); o 2º, o casamento civil em Brazzaville, em 1974 testemunhado, do lado da Amélia pelos seus Padrinhos Morais e Olga e do meu lado, pelo companheiro Manuel Videira e esposa; e o 3º, a transcrição desse casamento junto da Conservatória já na Angola independente.

Casamento civil em 1974 , em Brazavile

- Prendas (Pérolas, sapatos, perfumes, carteiras e peças de roupa)
A quem quisesse desfrutar de um momento de rara beleza, só era pedido que fizesse oferta de uma prenda à Amélia, não importa qual – pérolas, sapatos, perfumes, carteiras ou peças de roupa africana. Com efeito, a expressão do olhar e o sorriso na boca iluminavam-se mostrando facilmente a sua satisfação.

AM e adereços preferidos (traje africano, jogo de pérolas e carteira)

- Viagens

Viajar era a sua forma de afirmar a sua condição de cidadã do mundo. Em cada destino, ela estendia o seu abraço a toda humanidade. A descoberta de novos lugares empolgavam-na pela possibilidade de aumentar o seu conhecimento sobre diferentes geografias e culturas.
As viagens eram experiências únicas, algumas vezes com momentos dramáticos à mistura. Parecia que sentia prazer em viver as emoções próprias das situações de última hora: deixar a verificação da bagagem e documentos até o momento em que tivesse que ir para o aeroporto, recolher apressadamente, em cima da hora, os documentos e material de trabalho, a surpresa dos esquecimentos que provocaram umas tantas vezes o regresso à casa em busca do bilhete de passagem, afinal,  caído no chão no local de estacionamento, ou dos óculos ou da escova de dentes!

Peças em miniatura recolhidas em viagens

Peças em miniatura recolhidas em viagens

- Prazeres gastronómicos

A versatilidade e a elegância no uso dos diferentes tipos de talheres (o garfo e faca do ocidente, os pauzinhos do oriente e as mãos entre nós) mostravam uma Amélia que tratava uma refeição como um ritual de requinte.
Era dotada de um paladar experimentado na multiplicidade de iguarias proporcionada pelo contacto com uma gastronomia diversificada de acordo com as diferentes cozinhas dos países visitados.
Nestas condições, torna-se difícil indicar as suas preferências gastronómicas, mas no momento,  pensando na secção de curiosidades das revistas da especialidade, talvez, possa eleger o fondue pelo clima de convívio e de diversão que o rodeia e que eram do seu especial agrado. Com efeito, o fondue era um prato cuja preparação mobilizava a AM sem reservas. Dos vários tipos de fondue (queijo ou carne), a preferência recaia no fondue de carne, não o frito mas o que era cozido e no final, à medida que se perdiam no caldo pedaços de carne e de legumes, resultava numa sopa nutritiva e saborosa. Os petiscos também merecem uma palavra de destaque porque ela era uma petisqueira militante: ao longo do dia, havendo oportunidade, caía fatalmente na tentação de petiscar isto ou aquilo a ponto de algumas vezes , à refeição, lhe faltar apetite! Para não dar motivo para protestos nem ciúmes, é obrigatório lembrar o caviar e as ostras. Finalmente, perguntar-me-ão qual o lugar dos pitéus da feka na sua hierarquia culinária. Não há margem para dúvidas sobre  a força do vínculo de ligação à matriz cultural  da banda e que se enraizou igualmente no paladar moldado, anos a fio, desfrutando, por exemplo, de verdadeiros buffets kangolas aos Sábados. Sim, AM gostava de muamba de dendê, calulu, kisaka, mufete e feijão de óleo de palma, N’zuza, langu mbazu, cambiri, funje …

Calulu de peixe fresco

- A celebração das festas de aniversário

Gostava de reunir familiares e amigos para celebrar os meus aniversários, mas a partir de uma determinada altura, a Amélia tornou-se avessa a festejar os seus próprios aniversários em convívio alargado. Quando constatei esse facto, instituí um mimo que se converteu em ritual ao longo dos últimos anos: no dia do seu aniversário, eu raptava-a e desse modo, protegi-a dos assaltos que familiares e amigos usualmente protagonizavam às residências dos aniversariantes. Reservava um quarto num dos Hotéis da cidade e preparava-lhe um programa de celebração que incluía um passeio “main dans la main” nas imediações do Hotel, um jantar romântico (instruções nesse sentido eram passadas ao Chefe de Sala) e um final de noite na companhia da TV até cairmos no sono, nos braços um do outro. O sequestro romântico terminava no dia seguinte depois do buffet ao pequeno-almoço com o obrigatório regresso ao trabalho.
Em vez dos Hotéis, mais recentemente, as fugas românticas tinham como destino alguns resorts próximos de Luanda, por exemplo, Carpe Diem, Moringa e Mubanga Lodge.

Resort Carpe Diem - retiro escolhido para celebração romântica do 17Dezº2015

- Declarações de afecto

A AM era simples e directa a usar a expressão “amo-te”, condimentando-a com um olhar terno e um sorriso como esquebra. Tínhamos as nossas diferenças o que nos completava e tornava a nossa relação muito rica. Eu conjugava o verbo de outra maneira e com menos frequência, mas quando acontecia, ela recebia a seguinte declaração muito sentida: “amo-te e gosto de gostar de ti”. Nos momentos em que, à distância no Huambo, sentia o impulso de lhe dizer amo-te, escolhia uma música, fazia uma chamada e aproximando o telemóvel dos alto-falantes, levantava  o som para que ela pudesse escutar. Mais um gesto que ganhou o estatuto de ritual entre nós. Era enternecedor quando me interpelava: “hoje, não ouvi nenhuma canção.”   ▼▼▼

        https://youtu.be/ybsngqA6g_s

 

 

As Pancadas

Em contraste com os mimos e apesar de, no exercício de equilíbrio da balança, saírem a perder, algumas pancadas perturbaram alguns momentos da sua existência e como exemplos, destaco os seguintes:

- “A reclusão do marido”

Por razões óbvias, quase três anos injustamente roubados à liberdade e felicidade do casal. Éramos um casal nos primeiros anos de vida comum. A reclusão separou-nos numa altura em que iniciávamos a construção de um lar no país e deixou-nos isolados no meio de um ambiente hostil marcado pelo forte ostracismo imposto pelo regime político implantado pelo partido no poder.  O reverso da experiência da reclusão foi o reforço da nossa ligação que acabou por se aprofundar ao ponto de termos mantido o casamento por toda a vida.

- “O 27 de Maio”

O 27 de Maio atingiu-a enquanto cidadã, pois, não lhe era indiferente o surgimento de uma luta fratricida no interior do MPLA – o partido da sua família política - e pelo facto dessa luta ter reforçado o derramamento de sangue no seio de um povo já à braços com a guerra civil em curso.

O mesmo 27 de Maio infligiu nela outras pancadas mais, uma de ordem familiar: a perda de dois irmãos! Experiência altamente traumática que lhe custou a fragilização do sistema nervoso, mas ao mesmo tempo desvendou a sua inesgotável fonte de vitalidade.

 - “Quanto é que os tugas lhe pagam?”

Quando foi Directora do Instituto de Línguas Nacionais, atendendo uma convocatória de um superior hierárquico, no encontro com o mesmo em que também estava presente o Director de Gabinete, reagindo à conhecida posição de defesa da língua portuguesa por parte da Amélia, o referido superior hierárquico  interpelou-a nestes termos:

“Quanto é que os tugas lhe pagam ?”

Isso foi um insulto e um erro grave e que, quem conhecesse a Amélia não ficaria com dúvidas de que teriam uma resposta que, aliás, foi imediata e clara. Com efeito, a Amélia juntou as suas coisas, afastou a cadeira, levantou-se, balbuciou “desculpem-me” e virando as costas, perante o olhar estupefacto do Director de Gabinete, abandonou a sala. Tinha comparecido para trabalhar, não para ser insultada!

Quando me contou o episódio, senti um orgulho enorme de ser o seu companheiro. Nunca nos revimos no culto da bajulação e da subserviência cega. Os chefes não são deuses mas apenas eventuais líderes para o que devem ter um comportamento em conformidade.

 - As doenças

Outra frente de luta em que o seu espírito guerreiro foi desafiado. Tive episódios de saúde de extrema gravidade que colocaram a minha a vida em risco e perante os mesmos, soube estar ao meu lado, 100% solidária,. Apesar do enorme sofrimento interior, não demonstrava sinal de fraqueza, transmitindo sempre uma forte imagem de confiança. Hoje, percebemos que a imagem de saúde e energia que nos transmitia, escondia os danos causados a um coração que vivia intensamente os problemas que atingiam os entes queridos que a rodeavam.

Os Mimos que AM distribuiu

AM recebeu mimos, mas também distribuiu muitos mimos. Com o mesmo elan de um comissário político ou de um activista cívico, incentivava concidadãos a cuidarem da sua formação. Firme na trincheira do conhecimento, os seus mimos para as crianças não eram brinquedos, mas preferencialmente livros.

Não sendo o meu propósito, fazer o recenseamento geral dos seus mimos, termino elegendo o que, nesse capítulo, considero ter sido o seu expoente máximo, isto é, o mimo que reservou à sua amada Angola através da sua contribuição ao estudo que identifica, na sua especificidade, a apropriação da língua portuguesa pelos angolanos como factor de afirmação da nossa identidade nacional. AM escreveu: “É, efectivamente, “a nossa língua”, tal como cada um dos Povos a vai recriando e readaptando à sua realidade, aos seus sentires, saberes e paladares.”

Jota Carmelino

Luanda, 3 de Agosto de 2021


O Jardim Virtual

Nasci e cresci no mato. Beneficiando dessa vantagem, o relacionamento com a natureza era directo, imediato e, perdoem-me o pleonasmo, natural. Nas nossas correrias desde manhã muito cedo, os meus irmãos e eu ao olharmos e ao movimentarmo-nos em qualquer direcção, encontrávamos sempre um qualquer elemento da flora ou da fauna que integrava a natureza que nos envolvia, a qual, em todo o seu esplendor físico, se impunha como uma realidade impossível de ignorar.
Pelo contrário, a Amélia era uma citadina. Como se sabe, os centros urbanos são, na generalidade, um centro por excelência de processos de agressão ao ambiente por via de algumas actividades predadoras do bicho-homem, às vezes, numa demonstração quase irracional de indiferença perante os apelos cada vez mais clamorosos da natureza. 
Apesar da influência formativa da cultura do betão, a Amélia revelou-se, ao longo da vida, imune a essa cultura e consequentemente uma amiga do ambiente.
Por força das suas ocupações profissionais, sem chegar a converter-se numa militante activa das causas do ecossistema, aderiu ao que denomino um programa de serviços mínimos para a preservação do ambiente como é, por exemplo, o simples gesto de não deitar lixo no chão ou a reacção de indignação e de protesto perante eventuais desmandos infligidos à natureza por terceiros.
Também neste domínio particular do relacionamento com a natureza, ambos convergimos no objectivo de uma interacção amigável com ela, partindo do reconhecimento do seu papel vital para uma saudável existência humana.
Ilustrando a relação de cordialidade que fomos cultivando com a natureza, importa referir dois ou três exemplos, a saber:
1 – Programas de férias, no País ou no exterior que privilegiavam um contacto tanto quanto possível, próximo da natureza. Assim, regra geral, fugíamos das cidades e fazíamos escolhas alternativas que favoreciam o contacto com a flora, a fauna e outras atracções afins dos locais visitados;
2 – Captações das maravilhas da natureza através da objectiva de uma câmara. Deambulávamos pelos campos, cada um de nós empunhando a sua câmara para fazermos o registo fotográfico de tudo o que nos impressionasse, fosse plantas ou fosse animais, grandes ou pequenos, coloridos ou a preto e branco, tudo nos interessava e agradava. 
As plantas e muito especialmente as flores tinham sobre a Amélia um poder de atracção irresistível. Como uma formiga laboriosa, não se cansava de procurar e fazer fotos das mais diversas plantas e flores, sendo, algumas vezes, premiada com a descoberta de exemplares verdadeiramente fascinantes pelo seu exotismo.  

Flor silvestre (Mupas do Rio Kwiva – Huambo) – Amélia, 2012

Acabei por criar uma Pasta no computador que denominei o “Jardim Virtual da Amélia” onde até hoje guardo esse tipo de registos.
Convém também reservar algumas palavras para sinalizar o lugar especial ocupado nas suas preferências pelas imagens de pôr-do-sol e de arco-íris.

Pôr-do-Sol na província no Huambo  (Amélia, 2013)

Arco-íris – Kahala, Huambo (Amélia, 2015)

3 – Num exercício de recriação doméstica da natureza, ao invés da tendência geral no país, depois da independência, em que a maioria dos recém-inquilinos das vivendas ocupadas eliminava jardins e quintais para os converter convertendo os respectivos espaços em áreas cobertas, nós sempre mantivemos esses espaços abertos aos banhos de sol e à livre circulação de ar. O gosto pelas plantas esteve na origem do jardim que a nossa vivenda em Luanda quase sempre ostentou, no espaço da frente, no corredor lateral e no quintal traseiro.
No momento em que escrevo isto e para terminar esta evocação, ocorre-me um episódio engraçado associado ao nosso hábito de procurar novas plantas para melhorar o jardim, um ritual que, na performance da Amélia, ganhava por vezes contornos quase fundamentalistas. Confesso que algumas vezes me incomodava vê-la carregar volumes extra para a cabine dos aviões com pacotinhos de sementes, estacas de roseiras e outro tipo de plantas.

O jardim doméstico 1 (Jota, 2013)

O jardim doméstico 2 (Jota, 2013)

Retomando o episódio engraçado, numa das várias visitas que fizemos a Cabinda, topámos com uma árvore que me atraiu pelo facto de fazer lembrar uma planta com folhas artificiais de plástico e esse pormenor é que, aos meus olhos, lhe conferia uma aparência deslumbrante. A Amélia acompanhou-me no sentimento de encanto pela árvore. Recolhemos informações e ficámos a saber que pegava de estaca e logo obtivemos umas estacas para plantar no nosso jardim. O mesmo fez o meu cunhado Ruy Mingas. Um primo meu imitou-nos e com uma certa dose de exagero, decidiu mesmo plantar estacas em toda a extensão do muro da sua vivenda.
No regresso à Luanda, não perdemos tempo a plantar as estacas que, ao fim de algum tempo relativamente curto, pegaram com facilidade. E foi com um sentimento de euforia que registávamos a germinação das novas árvores que iriam contribuir para a diversificação das espécies do jardim.
Como acontecia antigamente, as famílias trocavam visitas com alguma regularidade e numa das visitas à casa do meu cunhado, quando precisou de ir verificar algo no gerador que ficava no fundo do quintal, acompanhei-o na incursão e constatei que as suas estacas já se tinham transformado em árvores vistosas. 
Olhando com mais atenção, dei-me conta de que as raízes das referidas árvores estavam a levantar o chão e mostravam sinais de extensa proliferação. De imediato, soou um sinail de alarme que, naquele preciso momento, me transportou mentalmente para o quintal da minha casa onde algumas estacas tinham sido plantadas na proximidade do tanque de água. Depreendi que, com a força com que as raízes se reproduziam, expandiam e levantavam o chão, não lhes seria muito difícil destruir as paredes do tanque. 
Apesar do nosso compromisso com o reino do verde, não havia alternativa à necessidade evidente de remover a árvore de Cabinda antes que causasse os estragos previsíveis. Preveni igualmente o meu primo em relação aos perigos escondidos por trás de uma árvore com um look tão sedutor. Adverti-o de que se quisesse preservar a integridade do muro da vivenda teria que remover as “árvores de Cabinda” em franco crescimento. Desconhecíamos o nome da árvore e baptizámo-la como árvore de Cabinda por a termos conhecido nessa Província.
Curiosamente, numa visita em companhia do meu irmão Nelito à ilha Fernando Noronha – o paraíso ecológico no nordeste do Brasil e que, em termos de latitude, está mais ou menos no alinhamento de Cabinda – num tour pela localidade, descobri no jardim de uma vivenda a nossa “árvore de Cabinda” com o seu habitual look vistoso. Impelido por um impulso, quis guardar uma recordação e pedi ao cavalheiro que estava a regar o jardim, autorização para fazer uma foto ao que reagiu, para confirmar o alvo do meu interesse, apontando:
- “Qual, a destruidora!? 

A denominada Árvore de Cabinda (Jota – Fernando Noronha, 2004)

Se alguma vez tive remorsos por me ter desfeito dessa árvore, libertei-me dos mesmos perante o testemunho de alguém do outro lado do oceano a queixar-se igualmente do seu poder de destruição. 

Jota Carmelino – Luanda, 12 de Maio de 2020 


O dia em que a Amélia conheceu o Kasema *

A Amélia e eu não compartilhamos o espaço e o tempo da nossa infância e da nossa adolescência porque só nos conhecemos mais tarde.
Quando os nossos caminhos se cruzaram, nos aproximaram e nos juntaram, a permuta de memórias da meninice e da adolescência foi fluindo entre nós e revelando mutuamente aspectos da matriz familiar e cultural em que se formatou a maneira de cada um de nós pensar e estar na vida.
A minha infância decorreu numa localidade denominada Kasema onde nasci. O Kasema é uma aldeia implantada na profundidade da Província do Huambo e, à época, constituída por habitações rústicas (o quimbo) e duas lojas comerciais, uma delas da minha família.
O Kasema foi e é bafejado pela natureza com cursos de água e uma geografia irregular que lhe conferem um encanto deslumbrante.
Durante anos enchi os ouvidos da Amélia com descrições das características físicas do Kasema e com relatos de muitos episódios da minha infância: a vida familiar marcada por um privilegiado regime de bem-estar e de abundância, a vivência diária com  animais de criação doméstica – suínos, aves, caprinos, bovinos e cães; as correrias no meio das plantações de milho, trigo e de pomares; as aventuras perigosas junto do moinho de água; os picnics familiares junto de cursos de água com pedras a servir de mesas e bancos. 
Guardei sempre no fundo do peito o desejo de, na primeira oportunidade, levar a Amélia a conhecer o meu berço natal.  
Durante o período da guerra civil, com a maioria das regiões do país praticamente transformada em teatro de conflitos armados, localidades como o Kasema caíram num isolamento total e não escaparam ao severo castigo da destruição do seu tecido social, económico e administrativo. Em particular, degradaram-se ou mesmo perderam-se os acessos rodoviários.
Depois de alcançada a paz, enquanto estava por efectuar a restauração geral do país, persistiram as fortes reservas em relação a possibilidade de acesso ao Kasema. Impunha-se, por isso, auscultar pessoas que o visitassem para obter informações sobre as vias de acesso existentes e o respectivo estado de conservação, na perspectiva de se chegar até lá por estrada, nem que fosse numa viatura todo-o-terreno.
Um trabalhador que mantinha contacto com pessoas que se movimentavam regulamente entre o Kasema e o Ukuma deu-nos a informação de que havia caminho para ir de carro ao Kasema e, acto contínuo, tomou-se a decisão de se preparar uma visita. 
Quando chegou o dia, sentia-se com facilidade a excitação da Amélia perante a oportunidade de conhecer, finalmente, o lugar onde eu tinha nascido e decorrera a minha infância.
O Kasema dista entre 15 a 20 Kms do Ukuma que, por seu turno, dista cerca de 100 kms da cidade do Huambo. 
A ideia era partir cedo da cidade do Huambo, o mais tardar 9:00 – 9:30 Horas, mas, como sempre, saímos atrasados, porque a matriarca da família – a minha saudosa mãe de seu nome Gina Carmelino fazia questão de preparar um rico farnel (fresco e não de véspera) que mais tarde seria necessário para sossegar o estômago dos viajantes. 
Como passageiros, figuravam, além de eu próprio, a matriarca Gina, a Amélia e a nossa filha Perpétua que se fazia acompanhar do Bob, o seu inseparável cão. No caminho para o Kasema, fizemos escala no Ukuma para recolher o trabalhador que seria o nosso guia.
Como se veio a revelar, a viagem foi marcante, não só pelo grande significado de que se revestia mas também pelas peripécias ocorridas.
Começando pelo acesso, em vez de estrada que, em absoluto, não existia, deparámos com dois trilhos feitos por veículos de duas rodas (motorizadas e bicicletas), pois a circulação desses veículos fazia-se nos dois sentidos e isso induziu, no trabalhador-guia, a ideia de que havia uma “estrada” apta para a circulação de automóveis. A suposta estrada mais parece uma picada, cheia de pedras e muita poeira, muito estreita e ladeada por ramagens que ameaçavam riscar a pintura da viatura. Além desta ameaça, havia também o receio dos buracos nas bermas e entre os trilhos. Por momentos, surgiu a dúvida sobre a viabilidade da visita mas não nos detivemos muito tempo a ponderar sobre o assunto. 
Com efeito, a Amélia não comunicava apenas por palavras. As expressões do olhar e do rosto dispensavam quaisquer palavras. Falta-me o estilo literário para retratar fielmente esta faceta dela mas bastava olhar para a sua expressão para perceber que ficaria profundamente desiludida se desistíssemos de visitar o afamado Kasema sem antes tentar tudo por tudo.
Felizmente, a nossa persistência foi premiada uma vez que o péssimo estado da picada não nos impediu de chegar ao destino. 
A aldeia está implantada num vale rodeado por montanhas. Assim, a aproximação foi feita a partir dum ponto mais elevado, descendo em direcção à ponte que dá acesso ao perímetro habitado. Antes de chegarmos à ponte, a Amélia desceu do carro numa demonstração de ansiedade por pisar o solo sagrado da terra natal da sua cara-metade. Desse mesmo ponto, alcançava-se um horizonte que permitiu constatar, de imediato, a ausência dos famosos campos de cereais e de pomares de outrora que povoavam os relatos que fizera à Amélia.

Amélia desce da viatura para pisar o solo sagrado

Feliz no meio da natureza

O efeito corrosivo da guerra fratricida e do profundo isolamento da localidade tinha transformado drasticamente a paisagem local. 
Uma vez nos domínios do Kasema, fomos abordados por dois populares que assumiram o papel de cicerones.
Aceite o acolhimento, fomos conduzidos, na visita exploratória, pelos inesperados cicerones.

No tour pelo Kasema, pudemos registar na margem do rio a imponência de muitas pedras de diversas dimensões, que constituem uma nota característica da paisagem envolvente.

A Amélia e a Perpétua constituíam o grupo estreante de exploradores e iniciaram, sem perda de tempo, uma deambulação à descoberta do Kasema.

Das habitações “coloniais” não restava pedra sobre pedra. No perímetro antigamente ocupado pela moradia da família, a loja e o armazém, encontrámos, como únicos vestígios da outrora majestosa construção, apenas um degrau duma pequena escadaria e os “marcos” administrativos que demarcavam a propriedade.
A visita exploratória incluiu um encontro não programado com o soba.

A visita não foi bem acolhida por uma parte dos populares com manifestações de que os “rostos pálidos” não eram bem-vindos. Todavia, este sentimento não era unânime já que alguns habitantes conheciam a história da família Carmelino e guardavam as melhores recordações da sua vivência no Kasema.
Mas apesar de remoto, o Kasema não escapou à globalização, pois deparámos com um campo de futebol e antenas parabólicas.
Pelo facto do acesso se ter tornado impraticável, não foi possível visitar o moinho de água, antigamente uma das principais atracções.
Saciada a curiosidade, compreendemos que tinha soado a hora do regresso mas não sem antes observarmos com mais detalhe a margem do rio. Assim, já de volta, saímos da picada para estacionar junto do rio perto das imponentes pedras aí perfiladas. Mas nesse desvio um pau escondido debaixo de folhas rasgou um dos pneus, episódio que conferiu à viagem um travo de aventura. Com efeito, por inexperiência, não sabíamos desmontar um pneu calcinado, situação que exigiria não uma, mas duas operações de socorro!

Enquanto se aguardava pelo socorro, a ideia foi a de atacar a merenda, pois, já iam sendo horas de aliviar os estômagos famintos. Tratava-se de uma oportunidade para recriar o exercício dos velhos picnics, procurando em redor as pedras apropriadas para improvisar a mesa e os bancos. 
Porém, antes que pudéssemos concluir a logística da merenda, a mesa improvisada para o picnic foi sendo ocupada pelos curiosos da banda. E afinal foi em pé que se merendou. 

Enquanto decorria a merenda, surgiram uns técnicos alegadamente com larga experiência de soluções de improviso. Arregaçaram as mangas para colar o pnéu já que o mesmo teimava em não sair e, em consequência, inviabilizava o recurso ao pneu de socorro.
A operação de colagem do pnéu consumiu muitas horas e muitos tubos de cola Araldite e, como se verificou mais tarde, sem resultado satisfatório.

O tempo escoava-se e anunciava-se  o fim do dia ou, se preferirem, o despertar da noite.

Para os protagonistas desta aventura, a mesma só terminaria às 3 da manhã, depois da chegada de 2 sobrinhos em segunda missão de socorro.

Luanda

Luanda, 27 de Fevereiro de 2020 

Jota Carmelino   

 *) Kasema (escrito de acordo com o alfabeto bantu) lê-se “Cassema”


Amélia Arlete Mingas
Amiga, Mestra, para sempre lembrada.

ELA EXISTE! Um misto de surpresa e alegria foi a reação que tivemos, eu e minha filha, Ana Pessoa, quando conhecemos pessoalmente a Dra. Amélia Arlete Mingas, durante II CIAD – “Conferencia Interacional de Intelectuais Africanos e da Diáspora”, realizado de 12 a 14 de julho de 2006, no Brasil, na cidade de Salvador, na capital do estado da Bahia.

Ela era para nós, um ícone, a linguista mais importante para os estudos que fazíamos sobre a interferência das línguas africanas, subsaarianas, que foram faladas no Brasil e participaram da constituição da modalidade do português brasileiro. Entre elas, destacaram-se kimbundu e kikongo como as majoritárias em número de falantes e pela sua larga distribuição em território colonial e imperial brasileiro, ou seja, do séc. XVI, quando navegadores portugueses comandados por Pedro Alvares Cabral aqui chegaram, ao sec. XIX, na fase do Brasil Império, com a abolição do escravismo no Brasil em 1888, seguido, em 1889, da independência do Brasil de Portugal.
Até o momento daquele encontro surpreendente para nós no Centro de Convenções da Bahia, onde se realizava o II CIAD, não conseguíamos manter contato com ela. Não respondia às nossas mensagens, nem aos recados que lhe mandávamos por amigos comuns, enfim, sempre ausente, silente, o que motivou aquela exclamação e o grito inesperado: Ela existe! quando a vimos na sessão em que eu era a convidada como expositora, para falar na mesa-redonda do GT II, Bloco B, As línguas africanas no sistema de ensino na África e na Diáspora, com a moderação de Rosa Cruz e Silva, então Diretora do Arquivo Nacional de Angola.
A partir de então, nunca mais nos separamos, participando de encontros acadêmicos na Bahia e na África. Entre eles, em março de 2008, no “Simpósio Internacional Interpenetração da Língua e Culturas de/em Língua Portuguesa na CPLP”, em São Vicente, Cabo Verde, organizado pelo Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP), do que era ela estava como Presidente, e a Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP). No Grupo II que abordava, “Interferências linguísticas” apresentei uma comunicação sobre A participação de falantes africanos na formação do português brasileiro, aspectos sócio-histórico e linguísticos, publicada em livro que  reuniu todas as falas daquele Simpósio, em julho de 2010, pela AULP.
Em 2008, com a brilhante conferência A língua como fator de identidade e de identização, Amélia Mingas abriu o II SIALA – “Seminário Internacional Acolhendo as Línguas Africanas”, na cidade do Salvador, encontros bianuais que idealizamos enquanto estávamos como Professora Visitante da Universidade do Estado da Bahia- UNEB, e, nos anos seguintes, 2010 e 2012, coordenou mesas redondas no III e IV SIALAS. Nesse último, cuja abertura ocorreu na Academia de Letras da Bahia, sob a presidência de Dr. Aramis Ribeiro Costa, com a também honrosa presença do Vice-Ministro da Cultura de Angola, Sr. Cornélio Caley, foi assinado pelo saudoso Reitor da UNEB, Prof. Lourisvaldo Valentim e por ela, autorizada pelo Reitor da Universidade Agostinho Neto, Dr. Orlando da Mata, um acordo de cooperação cultural para o oferecimento de kikongo e de kimbundu entre as línguas estrangeiras oferecidas como disciplina curricular pela UNEB, o que, lamentavelmente, devido a razões ainda em aberto, com a mudança do reitorado, não foi executado até hoje. 

Do outro lado, em 2014, com o tema central "As Humanidades e o Desenvolvimento de Angola num Mundo Multicultural e Globalizado", que ocorreu em Luanda, de 11 a 18 de Abril, participei do “I Congresso da Trienal das Humanidades”, organizado pela Universidade Agostinho Neto (UAN), com o concurso das Faculdades de Ciências Sociais, Direito, Economia e Letras, bem como das várias unidades de investigação.
A convite da Dra. Amélia Mingas, participei, na Faculdade de Letras, do IV painel temático “Letras, Humanidades e Ciências Humanas em tempo e mudança”. na sessão presidida por ela. Tive a honra de fazer a conferência inaugural abordando o tema Africanias: o legado linguístico-cultural negroafricano nas Américas, o exemplo do Brasil. Como polo norteador, parti do seu ensinamento “a língua substancia o espaço de identidade e identitário de um povo através da comunicação”, salientando que esse legado linguístico-cultural, que se estende a outras Nações Americanas e ao Caribe, deve-se aos falantes do mundo banto, principalmente de línguas angolanas pela sua prevalência no tempo, maior densidade populacional e larga distribuição humana no Brasil sob regime colonial e escravocrata.
Encerrei por dizer que Eça de Queiroz quando, certa feita, afirmou que o Brasil açucarou a língua portuguesa, poderia ainda ter dito que os angolanos a temperaram com o óleo de palma, o dendê, vermelho da cor do sangue que derramaram para construir a segunda maior nação de população melano africana do mundo. 

Se ter orgulho é pecado, confesso que sou pecadora. Durante o encerramento da Trienal, no monumental Centro de Convenções em Talatona, vi o sorriso de cumplicidade de Amélia, quando, com surpresa, fui convidada para receber uma homenagem da UAN na pessoa do Reitor Dr. Orlando da Mata, e, publicamente, com incontida emoção, pela primeira vez, em lugar do nome por que sou conhecida Yeda Pessoa, fui chamada de Yeda Muntu, dijina que comecei a usar com muito orgulho, por também me sentir batizada pela segunda vez. E com muita gratidão por ainda sentir naquele gesto o reconhecimento pelo meu trabalho de mais de três décadas de pesquisa nos dois lados do Atlântico em busca de uma correta interpretação das culturas subsaarianas, de seus códigos, seu consequente resgate do âmbito meramente folclórico ou lúdico, sua valorização e adequada difusão que permitirão que seu avanço, além de subliminar, passe a ser explicito e visível no Brasil. 

No intervalo dos compromissos acadêmicos, em Luanda, tive o privilégio de conhecer a Amélia, esposa e mãe dedicada e amorosa, durante as deliciosas refeições em sua casa, com sua família, sempre seguidas do cafezinho, à brasileira, gentilmente preparado pelo amigo Jota, seu marido Luis Carmelino.  Na Bahia, aproveitávamos esses momentos para lhe mostrar a cidade e visitar dois lugares específicos para a memória das tradições angolanas no Brasil, o centro cultural Casa de Angola, e o Terreiro Mokambo, Onzó Nguzo za Nkisi Dandalunda ye Tempo, com seu memorial Kisimbiê, guardiã da religiosidade ancestral do povo bantu de raízes angolanas e de suas línguas cultuais, tombado como Patrimônio Cultural do Brasil, sob a chefia do Tata dya Inkisi, Anselmo Minatojy.
Não é em vão que meu livro mais recente foi intitulado Camões com dendê, o português do Brasil, cujo prefácio seria de Amélia, dolorosamente, pela impermanência da vida, coube-nos render-lhe, na Introdução, essa singela homenagem:

In Memoriam 

Amélia Arlete Mingas, 
Linguista Angolana,
Minha Mestra Professora,
Kamba dyami dya muxima,
Amiga-Irmã do coração. 
A SAUDADE.


Yeda Pessoa de Castro. Yeda Muntu. 
Ana Pessoa de Souza Castro. 
(Universidade Federal da Bahia –UFBA)


Cidade do Salvador da Bahia, abril de 2020.


O Sorriso

Pode parecer estranho começar por falar do meu próprio sorriso em vez do sorriso da Amélia. A razão tem a ver com o facto de que a partir do meu sorriso, a Amélia criou entre nós um verdadeiro ritual.
No regresso a casa vinda do trabalho, na volta de uma viagem e noutras ocasiões, a troca de sorrisos tinha lugar cativo em 1ª. classe, no comboio de luxo em que estávamos confortavelmente acomodados para a nossa viagem comum nesta vida.
Para anunciar que estava a chegar a um encontro comigo, dizia (aliás, cantava) ao telefone, não me lembro das palavras exactas, algo parecido com isto: "menino lindo, estou a chegar, prepara um sorriso para mim".
Ao longo do tempo, percebi que tinha um sorriso que lhe agradava.  Envoltos nesse clima, em cada um dos nossos encontros, o sorriso era o primeiro sinal de interacção.  Quando, por alguma razão, o sorriso não acontecesse de imediato, era confrontado com a seguinte observação: ah, estava a ver o que é que tinha acontecido ao meu sorriso!
Mas, sem qualquer dúvida, a espontaneidade do mesmo era um dado adquirido.
Aprendi com ela a valorizar as "pequeninas coisas" como essa troca espontânea de sorrisos. Graças à forma como os acolhia e cultivava, eram momentos especiais que nos transportavam para estados de verdadeira felicidade.

AM_Sorriso.jpg

Naturalmente, ao falar-se de troca, evocamos o seu próprio sorriso. Aqui entramos num mundo à parte: o fascínio do seu sorriso reúne admiração unânime no seio dos familiares e amigos. Era uma das suas imagens de marca. Tinha um sorriso versátil, ao sabor das circunstâncias, ora discreto ora expressivo. Ao falar do seu sorriso, lembramo-nos igualmente da sua gostosa gargalhada – espontânea e sonora – com que reagia às situações hilariantes.
Viver com a Amélia era como receber um colar cheio de sorrisos, em vez de pérolas.

Jota Carmelino


Só visto!

Esta era e continua a ser uma expressão que uso com alguma frequência.
Usava (até abusava) amiúde com a mulher da minha vida.
Uma expressão que solto quando quero salientar algum aspecto, em particular, de uma situação ou captar a atenção de alguém para algum pormenor.
Com a Amélia, tal acontecia normalmente em circunstâncias divertidas, apelativas ao humor ou, no mínimo, à boa disposição. Em busca dum desfecho hilariante, num exercício de representação pura, rodeava a minha narrativa de um ar sério, incorporava-lhe um enredo mais ou menos dramático, subia as expectativas e, sem desvendar o happy end, concluía: Só Visto!
No final, compreendendo o exercício de boa disposição, a Amélia exibia um largo sorriso e uma bonita expressão nos olhos e no rosto. Só Visto!
Este exercício de boa disposição repetia-se vezes sem conta e para isso muito contribuiu a Amélia que, numa prova do bom desempenho de representação da minha parte, ficava, por vezes, na dúvida de estar perante algo sério ou, pelo contrário, de mais uma das minhas brincadeiras.
Momentos de divertimento e de cumplicidade: Só Visto!

Lisboa, 21 de Dezembro de 2019

Jota Carmelino


Um cocktail explosivo

Introduzo este tema, referindo um episódio envolvendo a Amélia, aquando da visita de uma delegação desportiva angolana à Nigéria, salvo erro, chefiada pelo Eng. Rogério Silva, então chefe do organismo reitor do Xadrez e, mais tarde, Presidente do Comité Olímpico de Angola.
No dia do vôo de regresso, no cumprimento das habituais formalidades de embarque (check-in, alfândega,  polícia de fronteiras), depois de se despachar, a Amélia iniciou a caminhada para a sala de embarque quando se apercebeu  de que o Rogério estava a ser sujeito a diligências de controlo nada amistosas por parte dos agentes locais.
Perante isto, acto contínuo, fez meia-volta e aproximou-se do grupo.
No semblante de Rogério percebia-se embaraço, nervosismo e preocupação, provavelmente provocados pela abordagem hostil dos agentes.
Se juntarmos ao incidente, a constatação de que, em alguns países africanos, raramente as delegações angolanas encontravam um acolhimento simpático, pelo facto de integrarem negros, mestiços e brancos, percebe-se a teimosia da Amélia em não acatar as indicações dos agentes para se afastar e seguir o seu caminho para a sala de embarque.
Como o Rogério é branco, compreendeu que os agentes estariam a tentar "penteá-lo". Não fazia parte da natureza da Amélia abandonar um companheiro à sua sorte. Reunia nela quase todos os elementos de um cocktail verdadeiramente explosivo: convicção de princípios, rebeldia, coragem, frontalidade, prontidão para a luta, determinação, espírito de solidariedade. Instintivamente mas com firmeza recusou retirar-se, explicando que viajavam juntos, se tratava do chefe da Delegação e, por isso, não embarcaria sem ele.
O desfecho saldou-se na desistência dos agentes que, certamente receando que o incidente pudesse atrair atenções indesejáveis, acabaram por largar o Engenheiro Rogério Silva e deixar a Delegação partir, com um profundo sentimento de alívio.
O cocktail explosivo que retratei aqui, enriquecido pela dose de romantismo presente na nossa vivência, é o mesmo que me valeu nas lutas que ambos travámos durante a minha prisão e as doenças de que tenho padecido.
O uso do termo explosivo tem um contexto próprio, o das lutas e disputas em que ela, generosamente, se instalava na trincheira das causas justas. Fora da trincheira, em ambiente de convívio, era uma pessoa encantadora: cordial, alegre, sensível, conversadora, generosa, numa palavra, verdadeiramente cativante.

Luanda, 15 de Março de 2020

Jota Carmelino


Depoimento da Dra. Heidi Goes

Heidi Goes1.jpg

(Nascida na Bélgica, em 1976, é assistente de prática na Universidade de Gent, Bélgica no departamento das línguas africanas e está a estudar as línguas Kikongo, incluindo Iwoyo, no percurso da sua tese de doutoramento, também investigada pela Prof. Dr. Amélia Mingas. Em 2015 pesquisaram juntas em Cabinda e mantiveram-se em contacto.)



15/08/2019

Cara Professora Mingas,

São quase 17h, pelo menos
para mim. Em Angola são
quase 16h, mas já não sabe
disso.

Você acabou de ser
sepultada, pelo menos de
acordo com o programa
que recebi esta manhã, mas
o momento exacto já não
importa.

É importante que na última
hora tenha pensado muito
em você, enquanto em outro
continente seus parentes se
despedem de você.

É importante que nos
tenhamos conhecido há
menos de quatro anos e
ainda não estou pronta
para não voltar a vê-la.

É importante que, apesar de só nos
termos encontrado algumas vezes
nesses quatro anos, você
me impressionou muito.

Fiquei impressionada com
a sua risada, a sua alegria de
viver, a sua maneira
completamente não
convencional de agir e
pensar.

Eu ficaria feliz se pudesse passar
mais horas, dias ... com
você.

Planeámos que
fizesse parte do júri da
minha dissertação. Nunca
antes senti tanto por tê-la
escrito tão devagar. Como
poderia eu ter previsto essa
crueldade?

Recentemente o seu e-mail
não funcionava, o que
atrapalhou a nossa
comunicação. Mas nas suas
últimas mensagens me
tratava afectuosamente
por "querida amiga".

Não ousei fazer o mesmo,
porque você é professora.

Porém, agora gostaria de
lhe dar um abraço e dizer:
querida amiga, fique connosco.

Todos lhe vão dizer agora:
descanse bem, mas duvido
que consiga fazer isso.

Por isso, peço-lhe: dê
coragem a seu marido, suas
filhas e outros entes
queridos para aceitar sua
morte prematura e
completamente repentina, e
me dê inspiração para
escrever sobre sua língua
materna.

Querida Amélia, hoje, e
provavelmente ainda nas
próximas semanas, minhas
lágrimas são por você e por
causa de você.

Um abraço,

Heidi

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O Poema na língua original

 
15/8/2019

Estimata profesoro Mingas,

 

Estas preskaŭ la 17a horo,
almenaŭ ĉe mi. Ĉe vi estas
preskaŭ la 16a, sed vi jam ne
plu scias tion.

Vi ĵus enteriĝis, almenaŭ laŭ
la horaro kiun mi ricevis ĉi-
matene, sed ne tiom gravas
tiu ekzakta momento.

Gravas ke en la pasinta horo
mi multe pensis pri vi, dum
en alia kontinento viaj
proksimuloj adiaŭas vin.

Gravas ke ni renkontiĝis
antaŭ eĉ ne kvar jaroj kaj mi
ne pretas jam neniam plu
vidi vin.

Gravas ke malgraŭ tio, ke ni
renkontiĝis nur kelkfoje en
tiuj kvar jaroj, vi forte
impresis min.

Impresis min via rido, via
vivĝojo, via tute na
konvencia ag-kaj
pensmaniero.

Mi volonte pasigus pliajn
horojn, tagojn… kun vi.

Ni planis ke vi estu en la
ĵurio de mia disertacio. Mi
neniam antaŭe tiom
bedaŭris ke mi tiom
malrapide verkas ĝin. Kiel mi
povis ĉi tiun kruelaĵon
antaŭvidi?

Lastatempe via retpoŝto ne
funkiis kaj tiel malhelpis nian
komunkiadon. Sed en viaj
lastaj mesaĝoj vi kareseme
min alskribis per ‘querida
amiga’.

Mi ne kuraĝis fari same, vi ja
estas profesorino.

Tamen nun mi ŝatus vin
ĉirkaŭbraki kaj diri: kara
amikino, restu kun ni.

Ĉiuj vin nun diros: ripozu
bone, sed mi dubas ĉu vi
sukcesos tion fari.

Do mi petas vin: donu
kuraĝon al via edzo, viaj
filinoj kaj aliaj proksimuloj
por akcepti vian tro fruan kaj
tute subitan forpason, kaj
donu al mi inspiron verki pri
via patra lingvo.

Kara Amélia, hodiaŭ, kaj
supozeble ankoraŭ en la
sekvaj semajnoj, miaj larmoj
estas por kaj pro vi.

Um abraço,

Heidi